Como tantas, Mônica fica hipnotizada com a maquiagem de minha mãe, Costanza. Mesmo já assistindo ao ritual tantas vezes, eu mesma não consigo replicar…é tarefa de horas, concentrada e com anos de experiência… O texto de Mônica, porém, coloca o fascínio em xeque-mate, ou pelo menos, o coloca em perspectiva! Obrigada Mônica por este delicioso presente e os sorrisos que o acompanham!
CONSTANZA E O DELINEADOR
Na primeira vez em que a vi no salão, num sábado à tarde, ela estava no lavatório. Relaxada, a cabeça jogada para trás emoldurada pela espuma de xampu, os olhos fechados. Durante alguns segundos fiquei admirando o risco perfeito e preciso do delineador nas pálpebras bem maquiadas.
Toquei de leve em sua mão.
“Constança, querida, como vai?”
Ela abriu olhos e sorriso ao me ver e trocamos amabilidades usuais. O tempo todo eu observava fascinada o traço preto e grosso que emoldurava os olhos cor de avelã voltados para mim. Era um risco de impressionante regularidade, macio, puxado para fora à moda egípcia, sem resquícios de modéstia ou timidez. O tipo de desenho feito por alguém que sabe exatamente por que deve ser daquele jeito, não de um outro.
“Constanza, como você faz esse risco tão bonito? É como se a pele não tivesse qualquer dobrinha, reto como se fosse feito com régua!“
Ouvi um leve suspiro. Ninguém é ícone da beleza e da moda, da elegância e do estilo, se não tiver praticado durante anos a fio a sublime virtude da paciência.
“É um pouco complicado”- diz ela. “Uso um lápis preto, um cotonete de ponta aguda que não tem no Brasil, azeite de oliva e…”
“Azeite de oliva?” – interrompo perplexa.
“Eu disse que é complicado…”
Ouço outro suspiro levíssimo.
“Vou fazendo umas misturas e…”
“Mas misturar lápis com azeite..?”.
Estou ansiosa e isso não é bom.
“Querida, deixa pra lá. Leva um tempão para fazer…”, diz Constança já se levantando do lavatório e ajeitando a toalha nos ombros.
Enquanto se livra de mim e segue para a bancada da cabeleireira, ocupo o lugar que ela deixou vago no lavatório. Fecho os olhos. Percebo então que estou capturada por uma estranha fantasia, quase uma ideia fixa. Desvendar o segredo de Constança e aplicá-lo no meu próprio rosto pode resolver todos os meus problemas de beleza acumulados ao longo de anos. Não são poucos.
Azeite e lápis são agora o meu Graal da aparência perfeita. Obter a fórmula secreta é minha missão impossível. Traço planos cheios de tramas e artimanhas – todas honestas, claro.
Nos meses seguintes, em variadas tardes de sábado, procuro a chance de retomar o assunto. Está bem ensaiado o controle da aflição na voz para que não surjam dúvidas sobre minha habilidade para manejar pincéis.
O resto do plano consiste apenas em deixar a conversa transcorrer serenamente até surgir o momento adequado para o ataque certeiro ao alvo.
Oportunidade e coragem chegam juntas ao último sábado. Tagarelamos, Constanza e eu, até que aproximo o rosto do espelho fingindo ajeitar minha própria maquiagem. Disparo, assim como quem não quer nada:
”Um dia você vai me contar como faz esse belo risco nos olhos, não é Constanza?”
“Agora. Vamos lá.” – diz ela, sem suspiros nem resistência.
E então me conta o truque do delineador perfeito.
Volto para casa depressa, repetindo mentalmente a sequência do procedimento para não esquecer qualquer detalhe. Alinho todos os ingredientes e ferramentas na bancada do banheiro, respiro fundo e começo a alquimia.
Com um lápis preto bem apontado faço um risco reto e longo nas pálpebras. Espicho bem o traço nos cantos externos dos olhos, exagerando na forma. Com o pauzinho de tirar o excesso de esmalte improviso o cotonete de ponta aguda que só se encontra no estrangeiro. Mergulho a pontinha do cotonete no azeite e o utilizo para corrigir as imperfeições do risco. Depois umedeço levemente um pincel pequeno e chato com creme hidratante e, com ele, aplico gel delineador sobre a superfície do desenho feito a lápis. Dou dois passos para atrás e analiso o resultado.
E então percebo que, em algum ponto, a receita tinha desandado. O almejado traço perfeito era um borrão preto e lustroso sobre pálpebras meio engorduradas, nas quais um risco extravagante me fazia parecer estrábica.
Toda a fantasia passou então para o passado perfeito. Aliviada, lavei o rosto e fiz em três minutos a minha maquiagem habitual, que consiste em rabiscar com lápis marrom o contorno dos olhos, esfumaçar com pincel e pronto. Pode não ser muito chique, ou marcante, ou impressionar ninguém, mas é tudo que sei e posso fazer.
Constanza bem que tinha me avisado.
“Eu tive aulas de pintura quando era garota e aprendi muitos truques com as tintas. Tudo, acho, para hoje poder fazer a minha maquiagem”.
Como se beleza extraordinária não fosse um conjunto de genes embrulhados para presente e entregue para muito poucos, descubro que também o dom da arte pode vir nesse pacote.
E, para que a vida não venha a se transformar numa cruzada por objetivos vãos, fui procurar um romance na estante. Ou, talvez, tenha ido assistir a um dos filmes do Oscar. Não me lembro mais.