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De juízes e juízos por Cris Zanferrari…

Adoro os textos da nossa querida amiga do Salotto, Cris Zanferrari!

De juízes e juízos

Cris M. Zanferrari

Crianças podem não saber nomear as coisas do mundo, mas são capazes dos sentimentos mais solidários do ponto de vista existencial. Quando pequena, havia em mim um sentimento e um desejo muito fortes de não fazer o mal. E não fazer o mal, no que dizia respeito à existência de pequeninos seres vivos, era simplesmente deixá-los viver. Sentia-me incapaz de pisotear uma formiga ou esmagar um caramujo. Essas criaturas indefesas inspiravam um cuidado não só porque em si mesmas não representavam perigo algum, mas porque sentia que, de alguma forma, a decisão sobre aquelas vidas tão ínfimas estava mesmo era nas minhas mãos. E eu sempre decidia deixá-las viver. Talvez porque fosse o certo. Ou talvez porque também sentisse, de alguma forma, que a vida é o bem maior que há.

Já adulta, aprendi que esse sentimento tem um nome: reverência. Foi estudando a ética do respeito à vida, de Albert Schweitzer, que me deparei com esse princípio elementar: “Sou vida que deseja viver, em meio de vida que deseja viver.” Nomeado o sentimento, vi crescer a responsabilidade de zelar por esses pequenos seres tão naturalmente indefesos. Quando entendemos que tudo o que respira, pulsa, procria, germina sobre a superfície terrestre é matéria viva, entendemos também que é nosso dever tomar conta do mundo.

E se tudo o que é vivo contém, em si, o desejo de continuar vivendo, também as plantas merecem a nossa reverência. Quando no meu jardim nascem ervas ditas daninhas, lembro logo de Caio Fernando, porque cultivo o mesmo dilacerante dilema: “como decidir o que deve ou não viver?” No meu caso, por excesso de compaixão, deixo florescer e vingar erva sobre erva e, ao final, se não tenho um jardim bonito, ao menos tenho a paz e a consciência tranquila de quem não aniquilou nem privou o mundo natural de sua ânsia de existir.

Mas não pense o leitor que não sou dada a repulsas e ascos. Tenho nojo de baratas, ganas de traças, e verdadeiro horror a ratos. Difícil aceitar que também essa escória é vida desejando viver. E no entanto: assim é. Como é também dessa perplexa constatação que Clarice Lispector extraiu o tema de seu célebre “A paixão segundo G.H.”. Nele, a personagem principal, após matar uma barata, se vê tomada por um interminável questionamento de ordem existencial. Olhando para a barata, constata entre constrangida e espantada: “o que eu via era a vida me olhando.” Eis a grande constatação: tudo o que vive é sagrado.

E porque é sagrado, há que se reverenciar. Talvez pareça piegas, ou seja de fato assombroso que se pense assim. Mas a literatura, a vasta literatura, está aí a dar provas de que o ser humano é sensível, e que nessa sensibilidade humana cabem juízes e juízos a fazerem o bem. Como no conto “O juiz”, de Miguel Torga. Conta o conto a história de Bernardo, recém-aprovado num concurso para juiz. Tendo conquistado o primeiro lugar, subitamente a magistratura se lhe afigura como um peso, um fardo pelas decisões que, dali em diante, estarão sob o bico de sua pena. À noite, já em casa, após o jantar com a mulher, recolhe-se ao escritório onde o aguarda, além da imensa biblioteca judiciária, o habitual copo de leite para beber antes de ir dormir. Imerso em suas meditações sobre os juízos que a um juiz cabem emitir, sobressalta-se com o estraçalhar do pires que cobria o copo. Era um rato que agora “teria de dar contas das suas acções. Dos livros que roera, do sofá que sujara e do prato que jazia no chão em pedaços.” Bernardo avança sobre o pequeno transgressor e eis com o que se depara: “Vivos, inquietos, dois pequeninos olhos mediam o perigo e calculavam as probabilidades de salvação. Nada. Atrás, a parede; dos lados, a carneira dos tratados; em frente o juiz.” Pesa sobre o juiz _ou sobre o homem, o que dá na mesma_ a suprema decisão. E então, à mão de Torga, dá-se o desenlace do conto:

Condenar… A desgraça é que precisamente quando a sentença vinha, a razão estava sempre do lado do criminoso. Indefeso, todo o ser tem razão.

Descida à pequenez dum rato, a humanidade ficou ali à espera.

E Bernardo apagou a lâmpada.

 

Juízes somos, portanto, todos aqueles que deliberam sobre as pequenas criaturas indefesas. Do nosso juízo dependem as borboletas e as mariposas, os passarinhos e os urubus, a flor e o inço.

“Indefeso, todo o ser tem razão.” Deve ser por isso que à visão da pequena traça, encurralada entre meu pé e a parede, também eu apago a luz.

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Obrigada Cris!!  Você sempre me faz pensar e sempre me faz emocionar!!… Estou em lágrimas!

Tem muito, muito mais no Mania de Citação (AQUI) de Cris e no seu instagram @prosapoesia!

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