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Cuidar das Palavras

Nossa querida Cris M. Zanferrari nos dá mais um texto sensível, com princípios básicos e essenciais… pensamentos para carregar conosco neste feriado! E para mais bálsamo de palavras, vejam o seu blog: Mania de Citação e seu Instagram, ProsaPoesia.
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Cuidar das Palavras

Cris M. Zanferrari

Um banco de praça promove encontros. Dos mais inusitados e surpreendentes. Foi assim com uma culta senhora de mais de 90 anos e um homem de meia idade e bom coração, protagonistas do terno e belo “Minhas tardes com Margueritte”. Ambientada em uma cidadezinha do interior da França, a história da amizade entre Margueritte e Germain é, sobretudo, uma história sobre a força e a importância das palavras.

Germain cresceu acreditando que as palavras eram feitas para humilhar. E as humilhações o atingiam vindas de todas as bocas falantes: do professor, dos colegas, e _ dor maior_ da própria mãe. Nunca uma palavra de incentivo, de encorajamento, de fazer sonhar. Até o dia em que conhece, ao acaso, uma senhorinha capaz de mudar não só o tom das palavras, mas a cor da vida. Margueritte é leitora voraz, conhece os grandes autores, e passa a ler livros em voz alta para Germain. A leitura compartilhada, no banco da praça, promove o que de mais significativo pode acontecer entre um ser humano e outro: o verdadeiro encontro. Ler em voz alta para alguém é estar junto. É estar próximo. É estar presente: de corpo, voz e alma.

Fato é que no dia a dia, dizemos palavras como quem respira: naturalmente. Não lhes damos a devida atenção, não lhes creditamos o devido poder e a verdadeira importância. Desatentos, falamos, insultamos, julgamos, rotulamos. E vamos, assim, semeando o caos, a discórdia, a desavença. É o que se vê nas redes sociais, no trânsito, na fila do banco, no trabalho ou em casa: palavras desmedidas, palavras impensadas, palavras desbocadas. Quando se vê, já se disse. Já se ouviu. Ah, quanta dor e injustiça pouparíamos, a nós e aos outros, se pesássemos as palavras ditas como quem pesa ouro em uma casa de penhor.

Não é difícil entender o poder que as palavras têm. Quem nunca ouviu a história de um sujeito que vomitou por causa de uma palavra? Em um jantar formalíssimo, comia, sem saber, a carne que mais abominava. E se deliciava. De súbito, alguém comenta sobre o preparo do prato. À menção da simples palavra, o estômago lhe devolve o assado boca fora, à mesa mesmo, sem que tivesse tempo de chegar ao banheiro. Há palavras que, quando ouvidas, nos provocam calafrios, temores os mais diversos, nos paralisam ou nos botam a correr. Outras há que nos acalmam, confortam, apaziguam. A palavra certa, na hora certa, é a justa medida das nossas necessidades. Da mesma forma que a palavra bem guardada pode nos poupar de muita saia-justa.

Aliás, fossem as palavras objeto de vestir, muito provavelmente não sairíamos à rua desalinhados, mal trajados ou sem uma autocrítica à frente do espelho. Palavras faladas e ouvidas dão corpo e forma à nossa existência. Moldam nosso caráter, sustentam valores, apontam caminhos, transcendem mundos, edificam o pensar. E eis que as palavras, tanto quanto uma roupa, também podem nos cair bem. Ou mal. Por isso, a necessidade do cuidado. Revestir-se de palavras gentis, carinhosas e boas é tornar o mundo um lugar melhor para se (con)viver.

Assim fez Margueritte em suas tardes com Germain. Apresentou-lhe um mundo novo, um mundo melhor. Sua presença, tanto quanto suas palavras, era amorosa. E não é que Germain não fosse amado por sua mãe, ele simplesmente nunca o soube, porque a mãe jamais usava palavras de bem-querer. A mãe ignorava um princípio básico da linguagem: dizer com palavras é fazer saber.

Se um banco de praça promove encontros, muito mais podem promover as palavras. Afinal, se somos o que falamos, se somos o que pensamos, é por meio das palavras que o somos. Cuidar das palavras_ sejam faladas, pensadas ou escutadas_ é cuidar de nossos afetos, de nossas relações, e do nosso modo de ser no mundo. “Ao sermos donos das palavras somos mais donos da nossa existência”*, já disse um autor que sabe tudo das palavras.

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*Mia Couto, no livro “E se Obama fosse africano?”.

“Minhas tardes com Margueritte” pode ser visto na Netflix, e o trailer você confere aqui:

Se não conseguir abrir o vídeo, clique AQUI.

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