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Além do Bojador

Queridos, este texto da nossa querida amiga do Salotto, Cris M. Zanferrari  (seu blog Mania de Citação) acredito ser perfeito para terminar esta semana de introspecção que fizemos por aqui.  Lindo, tocante e tão verdadeiro, ele nos ajuda entender que a dor é um caminho.  

Também, coincidentemente, hoje é o aniversário de 5 anos do tsunami que desolou o Japão.  Dedico este post à memória de todas as tragédias daquele dia.  Obrigada Cris!

ALÉM DO BOJADOR*

Cris M. Zanferrari

A mulher vai à minha frente pela calçada quando encontra um conhecido. Cumprimentam-se como se há muito não se vissem e param para conversar. Da cena urbana, rápida, comum e alheia, fica-me uma frase saída da boca feminina: “pois é… acordei pra vida!” Súbita vontade de parar também e ouvir o restante da história. Sigo pelo passeio a imaginar qual a doença, a pessoa, a tragédia ou o dissabor capaz de ter tirado essa senhora que não conheço do automatismo de seu cotidiano.

Acordar para a vida. Eis que navegamos no embalo dos dias, tantas vezes a remar contra a maré, outras tantas a deixar-nos levar pela correnteza, mas quase sempre num estado mareado, entontecido pelos afazeres diários, até o dia em que um tsunami varre nossa praia. Estremece nossos corações, abala nossos alicerces, faz naufragar nossos sonhos. E então, subitamente, acordamos. Porque só um pesadelo carrega consigo o desejo de despertar.

Cheguei a essa dura compreensão depois de ler “Caçadores de bons exemplos.”** O título do livro nos antecipa a história de um casal brasileiro, a Iara e o Eduardo, que decidiu abandonar uma vida convencional para pegar a estrada e, literalmente, caçar bons exemplos. Eles percorreram o Brasil de norte a sul, conhecendo gente e registrando as boas ações e projetos que testemunharam pelo país afora. Impressionam os números da solidariedade, do voluntariado, de gente semeando o bem. Mas impressiona também saber que muitos e muitos dos projetos que hoje amparam crianças e jovens, que protegem a natureza e os animais, ou que promovem a inclusão social de deficientes, são frutos colhidos a partir de uma história de dor. A perda trágica de um familiar ou uma doença grave, por exemplo, encontram-se enraizados em grande parte das iniciativas de ajuda ao próximo. A dor, mais do que o amor, é o que move as pessoas em direção umas das outras. A dor nos humaniza. Acorda-nos. Desperta-nos. E redireciona o nosso olhar.

E que não se subestimem as dores da vida. Não apenas catástrofes e tragédias promovem mudanças, ainda que estas as promovam em mais larga escala. Na verdade, toda e qualquer dor nos desacomoda, nos desorienta. Uma dor de cabeça pode irritar e sabotar o dia. A dor de se separar do filho pequeno à porta da escola pode fazer chorar. A dor de não passar no sonhado concurso pode levar à depressão. Não, não há vida sem dor. A dor de ter de fazer escolhas. A dor da solidão. A dor de não ser compreendido, de ser diferente. A dor de ver sofrer quem se ama. Há dor, há dores. A dor existencial. As dores da alma, as do corpo, as da psique, as do amor. Há dores de todos os tipos. E que fique bem claro: toda dor é legítima. E quando dói, dói sem tamanho.

Fosse a dor uma pessoa, seria uma matrona, agigantada pelos anos, confortavelmente sentada em uma cadeira de balanço na varanda da casa a esperar unicamente: que o tempo passe. Sim, porque cada dor tem seu tempo. Há que suportá-la, vivenciá-la, no período que lhe cabe. Há que reverenciá-la, porque sabemos: a dor remove o véu que nos encobre os olhos. Sem o véu, passamos a enxergar. Enxergamos tudo aquilo que _sem a dor_ continuaríamos ignorando. Desconhecendo. Despercebendo.

Quanto à mulher na calçada, pode até ser que tenha acordado pra vida sem um pingo de dor. Mas tenho lá minhas dúvidas. Aprendi, com a vida e a literatura, que “Quem quer passar além do Bojador, tem de passar além da dor”. De preferência, com os olhos bem abertos.

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*O Cabo Bojador [mencionado nos versos de Fernando Pessoa] foi um dos marcos mais importantes da navegação portuguesa, porque abriu caminhos para novos descobrimentos. Ao passar o Cabo Bojador, os navegadores portugueses entraram em mares até então desconhecidos.

**Para conhecer mais sobre o projeto dos Caçadores de Bons Exemplos, visite o site: www.cacadoresdebonsexemplos.com.br .

E para mais bálsamo de palavras, vejam o blog de Cris: Mania de Citação e seu Instagram, ProsaPoesia.

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